sábado, 24 de abril de 2010

No fio da navalha


Parece cocaína, mas é só tristeza. Definitivamente não é fácil viver com HIV no Brasil. Seria pior na África mas, ainda assim, não é fácil. O preconceito é grande em algumas relações, especialmente trabalhistas, afetivas e interiores. Muitos gestores banalizaram a epidemia, reduziram suas ações e equipes em aids e impactaram negativamente a vida das pessoas com HIV. Em muitos serviços não temos medicamentos e procedimentos para os efeitos colaterais ou adversos do tratamento, que vão de enjoo a câncer. Outras dificuldades poderiam ser listadas e respaldadas em estudos, muitas vezes parcos.

Então: Fiat Lux! Surge o coquetel, um Santo Graal da medicina que nos deu a esperança que precisávamos para viver a vida. Mas ele estava distante, era coisa de primeiro mundo e o Brasil, apesar do direito à Vida garantido pela Constituição e à integralidade da assistência farmacêutica garantida pelo SUS, ainda não fornecia esses medicamentos. A Justiça era a única alternativa para os que não tinham condições para arcar com os altos custos do tratamento.

O reconhecimento do judiciário e a pressão efetuada por ativistas e até mesmo pela então Coordenação Nacional de Aids fez com que em novembro de 1996 o Congresso Nacional aprovasse a Lei 9313, que garantia o direito à Vida através do fornecimento integral dos medicamentos. Estava decretado o fim de nossa maior angústia: não ter acesso ao tratamento. Seria o fim de nossos problemas. Seria.

Sancionada a Lei pelo Chefe do Executivo, os gestores, médicos e técnicos tiveram a hercúlea tarefa de organizar todo o processo envolvido: aquisição, estocagem, distribuição e fornecimento. Também era sabido por esses profissionais que a adesão ao tratamento era o quinto e essencial passo desse processo para controlar a infecção, tanto em nível orgânico quanto na gestão da saúde pública. Então nada poderia dar errado. Era adquirir, estocar, distribuir, fornecer e promover a adesão ao tratamento, bastante complicada em diversas situações. No início foi bastante compreensível que ocorressem falhas pontuais no fornecimento de medicamentos, afinal como já dito era algo extremamente complexo.

Porém, o tempo se encarregou de demonstrar que a política farmacêutica em aids também sofria de uma síndrome. Uma síndrome de equívocos e incompetências. Vários e recorrentes vêm sendo os problemas para que o coquetel chegue ao cliente do SUS no dia certo e na quantidade necessária para um mês. Problemas com o custo dos medicamentos, com a aquisição de genéricos, com a falta de planejamento em estocagem e distribuição e até mesmo com indicações políticas para cargos onde a eminência técnica é vital. De todo o país ecoam vozes desesperadas de pacientes e médicos que são obrigados a substituir terapias desnecessariamente ou a ir várias vezes por mês aos serviços pois seu tratamento está fracionado. Sem contar os eventuais efeitos colaterais e resistências virais decorrentes desse desastre logístico.

E isso se deve não a esse ou àquele gestor: é uma doença crônica que se espalhou por todo o organismo. Por esse motivo a sociedade civil organizada volta às ruas em todo o Brasil, pela terceira ou quarta vez nesta década. E, pela terceira ou quarta vez nesta década somos obrigados a passar por situações que erroneamente julgamos sepultadas em 1996. Certamente que em muitos lugares da África a vida seria bem mais complicada.. Mas vidas e mortes não se comparam. Apenas se igualam quando são dignas. Ou não. Sabemos também que nossos gestores em aids são pessoas extremamente comprometidas com a luta contra a epidemia e que estão fazendo o que lhes é possível para administrar toda essa situação. E é exatamente isso que nos preocupa.

Todos às ruas em 28 de abril!
Tolerância Zero para falta de medicamentos!
Em defesa do SUS!

Beto Volpe é soropositivo há 21 anos, presidente do Grupo Hipupiara e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids

FONTE: http://www.jornaldaorla.com.br/

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