quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O problema no Rio é a falta de direitos, não o excesso deles


Por >>>*Marcelo Semer

Quando a guerra urbana cessar e terminar a contagem dos mortos e feridos, alguém certamente se lembrará de apontar os culpados pela situação.

Não me surpreenderá, tendo em vista quem estará oficialmente encarregado de fazê-lo, que se apontem os culpados de sempre: o excesso de direitos.

Os traficantes se organizam e ocupam o vácuo do espaço deixado pelo poder público porque teriam direitos demais. Condenados voltam, mais dia menos dia, à liberdade, só porque têm, adivinhem, direitos. E se mesmo presos, mantêm a 'regalia' de comunicar-se com algum advogado ou familiar, é certamente pelo excesso insustentável de direitos.

Ora direis, ouvir direitos. Certo perdeste o senso, diria o poeta se vivesse nestes tempos bicudos.

Como se escuta cada vez mais nas tropas de elite que nos rondam, na ficção ou na realidade: não me venham com essa de direitos humanos...

A ideia de que fazer cumprir a lei possa significar desrespeitar direitos, no entanto, não é lógica, nem moralmente aceitável.

É bom entender que não existe um direito das pessoas de bem e outro de criminosos. Os direitos são, por sua essência, pertencentes a todos. O mesmo direito que o criminoso tem para se defender é aquele que o inocente usa para se isentar de uma culpa que não é sua. Cabe ao Estado, numa missão civilizatória, fazer cumprir os direitos e não desrespeitá-los.

No final da década de 70, o Bope já existia em São Paulo. Chamava-se Rota. O comandante dos policiais militares à época era um famoso linha-dura, secretário Erasmo Dias, que não parava de praguejar contra aqueles que defendiam "direitos humanos". Também se dizia que bandido bom era bandido morto e outras frases do gênero, hoje remixadas.

Naqueles tempos, saíamos da ditadura e o discurso-porrada foi se deslegitimando com o passar dos anos. Hoje virou o avesso do avesso e muito se propaga que a bagunça teria sido criada pelo excesso dos direitos humanos.

Mas a despeito deste novo consenso que vem se formando entre polícia, política e mídia, os problemas que se vivenciam no Rio de Janeiro hoje são decorrentes justamente da falta de direitos, não do excesso deles.

Ou será que alguém teria coragem de dizer que o direito constitucional à moradia está sendo respeitado, com milhões de residências precárias em guetos isentos de instalações habitáveis?

Estarão seus moradores recebendo o retorno dos serviços públicos na proporção e na preferência que decorre da sua necessidade?

Nós nos preocupamos quando os morros foram sendo habitados em locais desprovidos de condições sanitárias, ou nos satisfizemos com que eles ficassem apenas isolados por vias estreitas de acesso ao território urbanizado?

O Estado forneceu segurança em suas ruas e vielas, como faz nos bairros de classe média, para que os moradores não se sentissem dominados por traficantes ou milicianos?

Nós nos preocupamos com a educação e lazer desses jovens, para que não perdêssemos milhares a cada ano para os atrativos negócios do crime? E para aqueles que cederam, oferecemos em algum momento oportunidade de retorno?

Não, resolvemos o problema dos crimes, aumentando a duração das prisões e acabamos por estimular que um número cada vez maior de jovens passasse logo a militar nos exércitos dessas facções criminosas.

O Complexo do Alemão, pólo central das operações militares, tem um dos piores indicadores sociais do Rio de Janeiro. Cerca de 15% de suas residências não têm rede de esgotos. Isto na segunda maior cidade do país em pleno século 21. Quase 10% de seus habitantes ainda é analfabeto e um quarto dos jovens já está faz tempo fora da escola.

O Estado relegou habitantes de comunidades à mercê de criminosos certamente porque devia ter outras prioridades. Centros de música, limpeza nas praias, estádios esportivos etc. Mas se o crime desce a ladeira, faz arrastões na linha vermelha e incendeia carros e ônibus fora dos guetos, a prioridade se inverte imediatamente.

A omissão histórica do poder público e de seus agentes permitiu que milhões de pessoas fossem afuniladas nas armadilhas geográficas da cidade, prensadas e espremidas em lugares inóspitos. E só agora nos assustamos ao constatar que criminosos se aproveitaram deste vazio de vigilância e das dificuldades de acesso para neles se esconder.

Nem precisaríamos do crime para concluir pela necessidade de o Estado ocupar territórios onde vivem seus habitantes, principalmente os mais pobres.

Mas não deixa de ser uma metáfora sofrida que a suposta pacificação esteja se fazendo transportar nas comunidades pela via dos tanques, anfíbios ou casamatas. Será ainda pior, todavia, se ela se limitar a isso, como já ocorreu em outras ocasiões tão ufanistas como esta.

Que as reações ao que tem sido tratado na grande imprensa como um onze de setembro, não se restrinjam a caras-pintadas, uniformes camuflados ou armamento pesado. Há uma imensidão de Estado que se espera há muito tempo nas favelas.

Mas é importante que também saibamos resistir à tentação de suprimir direitos.

Os arautos da repressão podem até dizer que falam do inimigo, e somente dele, quando apregoarem que "direito bom é direito morto". Terrível apenas contra os insetos, como dizia a famosa propaganda.

Mas seja agora, seja mais tarde, cada vez que suprimirem liberdades públicas, todos nós sentiremos de alguma forma.

Faz bem ter sempre em mente o alerta do Capitão Nascimento em Tropa 2: "eu demorei para descobrir quem eram e onde estavam os meus inimigos".

Na guerra ou na paz, isso pode fazer toda a diferença.


*Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras).



Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/

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